Sempre que precisava ir ao centro da cidade, evitava andar pelas ruas principais. Tinha nojo, raiva, medo da confusão, da aglomeração de pessoas cuja única preocupação era a reunião das 14 horas. Preferia andar pelas ruas menores, silenciosas e cheias de histórias. Andava olhando pra cima, para o alto dos prédios do inicio do século 19 com seus bustos e gárgulas contrastando com os mais modernos arranha-céus de vidro que refletiam os raios do sol transformando a luz divina em mais uma força a perturbar aqueles que se buscavam. Os vidros, espelhos gigantes, são uma tentativa frustrada de separarem os de dentro e dos de fora de um jeito mais subjetivo que uma porta. Esta, a porta, definitivamente os separa em dois grupos distintos: os que podem entrar e os que não podem. Os vidros-espelhos faziam mais, pois além de separar os grupos, ainda mostravam aos de fora suas aparencias como que se dissessem “é por serem o que são que não podem entrar aqui”. Os vidros-espelhos são os gargulas do mundo contemporãneo, pois os gárgulas, que tanto admirava, também serviam para espantar aqueles que não fossem bem-vindos, geralmente os maus espíritos, e os vidros, porem, fazem mais, pois não tem qualquer beleza plástica justamente porque refletem o mundo exterior. Esses fazem mal a alma de quem passa.
Enquanto caminhava divando sobre o que nos fazia tão parecidos com o que éramos, chegou ao local que queria: um antigo prédio transformado em centro cultural, onde artistas, intelectuais, crianças e pessoas simplesmente desocupadas tentavam em vão decifrar a o que um artista queria dizer com esta ou aquela pintura, como se fosse essa a única razão de um artista fazer o que faz, querer dizer o não é dito. Um artista tem muitas razões para fazer o que faz. As pessoas porém fazem coisas totalmente sem razão e em momento algum se perguntam porque o fazem. “Que vergonha”, falou sussurrando querendo ao mesmo tempo ser e não ser ouvido. E não foi. Ninguém está ali para ouvi-lo. Alias, ninguém sequer o notou, passou invisivel pelas pessoas do térreo e subiu pelas escadas de mármore seculares gastas por infinitos passos de gerações e gerações de pessoas nem sempre interessadas pela mesma coisa que ele. Um dia, duas centenas de anos no passado, aquelas escadas serviram a reis, principes e banqueiros.
Mais um lance de escadas e chegou ao segundo andar, de onde se via o térreo e acima a visão majestosa da cúpula, coberta pelo azul escuro do céu de outono. Voltou-se para dentro de uma das salas onde passeou pela exposição de desenhos de um artista que admirava pela intensidade das cores e pela maneira que trabalhava o papel. Era um artista famoso e surpreendeu-se ao saber que ele ainda estava vivo, pois na arte muito se fala do trabalho e pouco da pessoa. Os artistas em sua maioria, são reclusos, não dão as caras em revistas ou na televisão, como se em sua época não existisse a mídia. “oh, ele é velho! Oh, ele é negro! Ih, é uma mulher” exclamava quando finalmente via o rosto daqueles nomes sobre os quais se lia tanto em textos de faculdade ou se ouvia em rodas de chopp com os amigos mais chegados. Sua intensão, finalmente é hora de mostra-la, era acabar com isso. Iria de uma só vez mostrar a cara de um artista e sua obra, entrar para a história de corpo e alma e ainda aparecer na televisão e nas revistas fazendo juz ao nome "artista" e aos recursos da querida e odiada mídia. Iria provar que nem gárgulas, nem vidros-espelhos eram capazes de dete-lo quando se tinha uma nobre intensão e ainda faria as felizes pessoas desocupadas encontrarem uma resposta para as suas tais perguntas. Responderia a todos de uma só vez.
De lá de dentro da sala de exposição olhou para a frente, mediu a distância e correu em direção a mureta e saltou, lembrando-se das aulas de arte, dos saltos de trampolim no clube que frequentava com a familia durante a infancia e dos pretenssos artistas contemporâneos que ganhavam matérias superficiais em programas de televisão de entretenimento.
A posição com que seu corpo parou no chão lembrava uma antiga escultura cubista que tinha visto em slides e seu sangue o pintou com um vermelho mais bonito que os dos desenhos que admirava. Agora podiam dizer que ele tinha sua própria instalação num dos mais famosos centros culturais da cidade e podia ter em seu currículo uma performance. Finalmente ele podia entrar para o hall dos famosos artistas contemporâneos.
29 julho 2009
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